sexta-feira, 17 de outubro de 2014

Coisas de Manos

Aos 18 anos, ganhei um irmão de 9. Adoptado numa dessas coincidências da vida que nos fazem sentir que tudo tem um sentido de existir.

Lembro-me do seu olhar assustado, na primeira vez que me viu.
Lembro-me da sua curiosidade tímida sobre tudo aquilo que eu era e tudo aquilo que eu fazia. E da minha curiosidade também, sobre quem ele tinha sido, mas sobretudo sobre poderia vir a ser, se o ajudássemos.
Lembro-me da primeira vez que, timidamente, me deu a mão no banco de trás do carro dos meus pais.
Lembro-me da primeira vez que adormeceu no meu colo e de tudo o que pensei enquanto decorava as linhas do seu rosto.
Lembro-me de o ver engordar e querer comer tudo aquilo a que antes não tinha acesso.
Lembro-me da sessão do tribunal em que ele ganhou o nosso nome e, acreditando finalmente que éramos uns dos outros, começou a chamar a minha mãe de MÃE e o meu pai de PAI. Eu era Sara e Sara fiquei, mas agora um bocadinho mais mana. De verdade.
Lembro-me de o tentar pôr a estudar e de desesperar!
Lembro-me da primeira e única bofetada de irmã que lhe dei, e do que chorámos juntos depois disso.
Lembro-me das nossas férias, de o ver nadar, de o ver andar de bicicleta, de o ver esquiar.
Lembro-me das músicas que ele gostava e que ele me punha a ouvir.
Lembro-me de o ver crescer, começar a usar desodorizante, fazer a barba, arranjar-se todo para sair.
Lembro-me de já não saber bem o que lhe dizer. "Estás grande, João..." Sorriso. Silêncio. Adolescência vs Mana Cota.
Lembro-me de o ver olhar para os meus filhos. Os seus sobrinhos.
Lembro-me do seu cheiro. Do seu cabelo fino, que ele puxava para o lado. Da sua voz.

Aos 27 anos, perdi um irmão que me deu isto tudo. E todo o sentido que essas coincidência da vida nos haviam feito ganhar, foram abaladas. "Porquê?" "Porquê ele?" "Porquê agora?"
Depois, com as feridas já mais saradas, lembro-me de pensar que ninguém é de ninguém. Que os filhos não são nossos, são da vida. Os manos também. E que nada pode roubar o sentido da vida se, enquanto vivermos, fizermos por usufruir desse mesmo sentido, em cada dia, com cada pessoa que passar pela nossa vida.
Custa a dor, doem as saudades. Mas o sentido é o sentido. Apesar de tudo, faz sempre sentido.

O João foi o nosso presente da vida. Esperemos ter sido também o dele...

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