A propósito da morte do actor António Feio, voltou o tema da morte. Não nos filhos. Na mãe. Recebi vários mailes hoje sobre palavras que o actor tinha dito, conselhos que tinha deixado aos amigos, despedidas ao público em geral... e lembrei-me da carta que, em tempos, escrevi aos meus filhos. Não era uma carta qualquer. Era a carta que eu queria que eles lessem se um dia morresse de repente. Os gémeos ainda não existiam (e tempo para reescrever a carta?), e ainda não me pesava tanto a pergunta que carrego hoje: Como é que o meu marido se desenrascaria sozinho com 4 filhos?! Naquela altura a preocupação maior era outra (e ela continua grande): Que memórias guardarão os meus filhos da mãe, se eu partir agora? Sei que a memória é traiçoeira, e a das crianças apaga-se frequentemente para deixar espaço para tudo o que elas têm de aprender ainda (como perguntava o meu sobrinho Manel: Eu depois vou-me esquecer disto?). Quando se é adulto e nos morre alguém querido, guardamos dessa pessoa o melhor dela. Apaga-se o resto. E isso não é mau. Quando se é criança e morre alguém querido, não se apaga só o mau. Apaga-se também o bom. Frequentemente, apaga-se toda a pessoa. Tudo. Por isso, se eu desaparecesse naquela altura, desapareceria tudo. Na memória dos meus filhos ficaria apenas aquilo que o pai, a famÃlia e os amigos lhe diriam. A explicação das fotografias que veriam. A tristeza dos adultos, que passaria para as crianças. Ao ponto de as marcar. Ao ponto de os fazer associar à ideia da mãe uma tristeza infinita. Uma perda irreparável, de uma memória que nem é real, porque foi fabricada pelos outros.
Posso não estar certa. Espero continuar por cá para não ter de o comprovar. Mas, pelo sim pelo não, escrevi uma carta aos meus filhos. Uma carta bem disposta, a dizer-lhes que fui muito feliz com eles, e que a felicidade deles, daà em diante (depois de me perderem) não estava de modo nenhum dependente de mim. Chegara a altura de seguirem o seu caminho, e outras pessoas igualmente competentes os acompanhariam nessa viagem. E que eu tinha pena de não estar presente, mas que o exemplo de me perderem cedo lhes fizesse sentir uma responsabilidade maior de serem felizes todos os dias.
Poderia ter-lhes dito que ia ficar numa estrelinha. Num céu. Sempre ao lado deles. Mas essas mentiras (só porque não tenho a felicidade de acreditar nelas) deixaria para a boca dos outros. A minha carta seria para o caso de eles, assim como eu, não terem também a capacidade de acreditar em algo para além daquilo que temos aqui em baixo. Seria a minha verdade. E eu nunca minto aos meus filhos.
A carta existe. Terá de ser reescrita. E espero ainda escrevê-la muitas e mais vezes. Não porque conto ter mais filhos que me forcem a uma necessária actualização. Mas porque espero viver o suficiente para ver os meus filhos seguir os seus sonhos e serem felizes, anulando (por ausência de necessidade) linhas de conselhos e vontades minhas, até que a minha partida seja entendida como natural, a lei da vida, a memória já não seja uma traição, e não sejam já precisas mais cartas de despedida... Ou, a ela ainda existir, que seja apenas uma linha: "Foi um prazer estar convosco".
Posso não estar certa. Espero continuar por cá para não ter de o comprovar. Mas, pelo sim pelo não, escrevi uma carta aos meus filhos. Uma carta bem disposta, a dizer-lhes que fui muito feliz com eles, e que a felicidade deles, daà em diante (depois de me perderem) não estava de modo nenhum dependente de mim. Chegara a altura de seguirem o seu caminho, e outras pessoas igualmente competentes os acompanhariam nessa viagem. E que eu tinha pena de não estar presente, mas que o exemplo de me perderem cedo lhes fizesse sentir uma responsabilidade maior de serem felizes todos os dias.
Poderia ter-lhes dito que ia ficar numa estrelinha. Num céu. Sempre ao lado deles. Mas essas mentiras (só porque não tenho a felicidade de acreditar nelas) deixaria para a boca dos outros. A minha carta seria para o caso de eles, assim como eu, não terem também a capacidade de acreditar em algo para além daquilo que temos aqui em baixo. Seria a minha verdade. E eu nunca minto aos meus filhos.
A carta existe. Terá de ser reescrita. E espero ainda escrevê-la muitas e mais vezes. Não porque conto ter mais filhos que me forcem a uma necessária actualização. Mas porque espero viver o suficiente para ver os meus filhos seguir os seus sonhos e serem felizes, anulando (por ausência de necessidade) linhas de conselhos e vontades minhas, até que a minha partida seja entendida como natural, a lei da vida, a memória já não seja uma traição, e não sejam já precisas mais cartas de despedida... Ou, a ela ainda existir, que seja apenas uma linha: "Foi um prazer estar convosco".