(Afonso na sua sinceridade máxima):
- Mamã, a partir de agora vou chamar-te "super-gorda"!
Lá me tentei defender, como pude, do ataque sincero do meu filho mais velho.
- Ó filho... mas a mamã só tem uma grande barriga porque tens os bebés na barriga. Depois, quando eles saírem, a mamã fica magrinha outra vez...
- Eu sei. Quando eles nascerem, vais ficar outra vez a "super-magricela".
Que conversa animadora :( O meu filho sabe mesmo como me encher o ego!
(Afonso e mais uma das suas tentativas de explicar o mundo):
- Ó mãe, sabes como é que foram criados os Pokemons?
- Os Pokemons não são criaturas de outros planetas? - perguntei eu, na minha santa ignorância.
- Não, mãe... eu explico-te. Como Jesus criou tudo, quando criou o homem, também lançou uns raios de super-potência e a terra levantou-se. Saíram umas criaturas com poderes mágicos que evoluem e...
A história continuou, rebuscada. Não a reproduzo mais porque, sinceramente, não sou capaz. Corria o risco de falsear a sua "verdade". Só me pergunto como é que as crianças de hoje em dia, futuros adultos amanhã, depois de desenhos animados tão rebuscados e cheios de criaturas imaginárias, magia e mundos paralelos, como os que passam na televisão, vão encarar a realidade, a religião, a morte e a vida, o universo e a pequenez da nossa condição humana. Que estarão mais abertos a outras realidades possíveis, isso não tenho dúvidas. E, ou muito me engano, ou isso será muito bom. Talvez represente mesmo um grande passo para uma evolução necessária da nossa espécie...
(Sebastião a olhar para a minha barriga, cada vez maior)
- Mamã... se tu tens aí bebés, temos que chamar o caçador para te abrir a barriga...
Acho que o meu filho Sebastião me vê como um lobo mau que comeu uns gémeos... Só espero que depois ninguém me encha a barriga de pedras e me atire para dentro de um poço... :(
- Ó mãe... porque é que as árvores se chamam árvores?
Pronto. Começava a primeira crise linguística do meu filho Afonso.
- Foram as pessoas que deram o nome às coisas, filho.
- Mas porque é que chamaram árvore à árvore?
- Não sei, filho. Um dia que tu encontres alguma coisa que nunca ninguém viu, ou inventes alguma coisa que não exista, também podes dar-lhe o nome que tu quiseres.
- Mas quando os humanos apareceram na terra as árvores já eram árvores?
- Não, filho... quando os humanos apareceram na terra nem havia palavras. Os pré-históricos, que foram os primeiros homens, comunicavam com gestos, e depois com sons, como os animais, até que se começou a dar nomes às coisas. - respondi eu, certa de que teria que investigar o assunto assim que chegasse a casa - E em cada zona do planeta foram-se dando nomes diferentes às coisas. Por isso é que há línguas diferentes.
E subitamente, vejo o meu filho no banco de trás a apontar para uma casa, chamando a atenção do Sebastião, que estava ao seu lado, com gestos pré-históricos e sons guturais:
- Bastião... Ca-ca, ca-ca, ca-sa! Casa! Casa! Foi assim, mamã?
(conversa entre o Afonso e o Sebastião no carro, no banco de trás, a caminho da escola)

- Sebastião, queres ouvir a primeira história da Bíblia?
- Sim.
- Era uma vez uma girafa. Começou a chover muito e a girafa meteu-se num barco. Mas não cabia no barco e foram ao fundo...
(tinha muitos outros pormenores, mas já não consigo descrevê-los com as palavras do meu filho. E eu entretanto também não resisti a meter-me na conversa.)
- Ó Afonso, tu sabes quem é que escreveu a Bíblia?
- Foi o Jesus.
- Olha que não, Afonso.
- Ah, pois não! Foi o Cavaco Silva!
Espanto!
- E tu sabes quem é o Cavaco Silva?
- Sei. É o Presidente da República.
Fiquei inchada de orgulho por o meu filho já saber o nome do Presidente da República e continuei a conduzir, nuns segundos de silêncio que fizeram o Afonso reatar a sua conversa com o irmão.
- Sebastião? Queres ouvir a terceira história da Bíblia? Esta foi escrita pelo José Sócrates...
Aposto que ele não aprendeu isto na catequese...
(depois de ler a história do rei Midas, que o Afonso trouxe da biblioteca da escola. Para quem não se recorda, o ganacioso rei Midas perseguiu uma das suas muitas moeda que lhe escapou das mãos, caiu das escadas e apareceu-lhe um duende que lhe quis dar uma lição: tudo aquilo em que ele tocasse se transformava em oiro)

- Percebeste, Afonso? Imagina que tudo aquilo em que tu tocavas se transformava em brinquedos...
Abriu muito a boca e os olhos, como ele faz sempre que fica admirado.
- Era muita bom, mãe!
- Não, não era... Depois tocavas na mãe, e eu transformava-me numa boneca de trapos... Tocavas no pai, e ele transformava-se num Gormitti...
- Era giro...
- E depois quem é que te fazia a comida para tu comeres?
- Eu nunca mais comia... - usei, claramente, o argumento errado. Quem dera ao meu filho Afonso nunca mais ser obrigado a comer!
- E quem é que te limpava o rabinho, quando ias à casa de banho? - como ando a tentar que ele aprenda a limpar-se sozinho, achei boa ideia puxar pela escatologia.
- Usava o papel... - ok, ele estava disposto a limpar-se sozinho. Devia ter-me ficado por aqui, mas queria que ele chegasse à conclusão do rei Midas, por isso insisti.
- O papel também se transformava num brinquedo...
- Já sei! Tu não eras uma boneca de trapos? Limpava o cocó aos teus trapos...

Desisti e voltei-me para o Sebastião.
- E tu, Sebastião, percebeste a história do rei Midas?
- Sim, mamã.
- O rei Midas não devia querer as moedas todas para ele, não era? Ele devia ter partilhado com as pessoas que não tinham nada...
- Pois é... - disse o Sebastião, nada convencido. - Ou então devia ter cuidado a descer as escadas, para não cair e não aparecer o duende... "Pois é", mãe?
Meti-os na cama. Os meus dotes de contadora de histórias, definitvamente, ainda deixam muito a desejar...
Depois de fazer mil festas na minha barriga, ora na mana, ora no mano (que ele sabe tão bem de que lado estão), o Sebastião levantou a sua blusa e olhou para a sua barriga, apenas cheia das bolachas do lanche:
- Ó mãe... quando é que eu também vou ter bebés na barriga?
Era uma e tal da manhã, quando o Afonso acorda a gritar, muito aflito. Imaginei logo que estava a ter um pesadelo (e os meus filhos, nessas matérias, bem que podiam não ter saído à mãe) e corri para o quarto, a ver o que se passava.
- Não, mãe. Não era um pesadelo! - tratou o Afonso de explicar, entre as muitas lágrimas que lhe corriam pelo rosto. - É só que eu não quero morrer!
A saga continuava. O pai já anda a pensar que eu sou que lhe falo destas coisas, ou lhes ando a ler histórias tétricas à noite, mas eu juro que evito ao máximo tocar no assunto, até porque já sei os filhos que tenho.
- Ó filho... Mas tu não tens que pensar nisso... Só tens cinco anos!
- Eu sei, mãe. Mas eu não quero morrer... nem quando eu for velhinho!
Ora bolas! Assim ia ser mais difícil tranquilizá-lo. Como dizer-lhe que ele não ia morrer... nem quando fosse velhinho?
- Há alguma maneira das pessoas nunca morrerem, mãe? - continuou ele, de olhos cheios de lágrimas.
Saquei-o da cama e pu-lo ao meu colo, coisa que, com dois bebés na barriga, já não é tarefa fácil.
- Quando as pessoas são velhinhas, filha, ficam cansadas... e precisam de descansar. E elas não desaparecem... Ficam para sempre a olhar por nós, nas estrelinhas...
- Mas eu não quero ir para as estrelinhas, mamã. Eu quero ficar aqui. Nunca quero descansar!
Começa a ser cada vez mais difícil acalmar as dúvidas do meu filho em relação à morte. Já nem as estrelinhas o consolam. Por isso tive que lhe dar uma nova esperança. Uma esperança que eu acho que não virá a tempo, nem na minha vida nem na dele, mas alguma coisa tinha que o fazer voltar para a cama e descansar.
- Sabes que dantes as pessoas morriam muito cedo. Havia muitas doenças. Mas os cientistas foram descobrindo curas para essas doenças, e as pessoas cada vez vivem mais tempo. Dantes as pessoas morriam com a idade da mamã...
Olhou para mim, muito espantado, de boca aberta.
- Mas agora, já há pessoas a viver até aos cem anos! Que são muito anos.
- Então, se eu for cientista, posso descobrir uma maneira das pessoas viverem para sempre...
Hesitei, mas dei-lhe a única resposta possível, à uma e meia da manhã.
- Claro, filho! Vais estudar muito para te tornares cientista, e vais descobrir uma maneira das pessoas viverem para sempre!
- Boa! Então vou ser cientista e bombeiro.
- Bombeiro também, Afonso?
- Sim... para também não deixar que ninguém morra queimado.
E pronto. As lágrimas secaram, e o meu filho Afonso adormeceu com a certeza que um dia vai ser um grande cientista e vai descobrir o elixir da vida eterna. E eu, que já não tenho cinco anos nem acordo a gritar a meio da noite, também me deitei e adormeci com essa esperança...
(Afonso a ver o Liedson na televisão)
- Olha, mãe! Está ali o papá!
- O pai, filho?!
- Sim... mas era quando ele era mais escuro... Depois fez uma operação e ficou branquinho...
(e não conhece ele a história do Michael Jackson...)
O meu filho mais velho continua absolutamente tétrico, e as suas preocupações com a morte revelam-se quase todas as noites, nas nossas conversas antes de ir para a cama. E a de ontem foi assim:
- Ó mãe... se vires formigas na casa de banho, não ponhas veneno. Promete, está bem?
- Mas porquê, filho?
- Porque se eu tocar no veneno posso morrer...
(e arrependi-me imediatamente de lhe ter dito que ele não podia, de modo algum, tocar no buraquinho da parede que estava a servir de porta à entrada às formigas, e eu enchi de veneno)
- E eu não queria morrer já aos cinco anos, mamã... Ainda sou muito novo!
Não podia estar mais de acordo com ele! Mas a conversa tétrica continuou...
- Tu já viveste mais do que eu. És mais velha. Mas também é melhor não morreres, porque senão também morriam os bebés que tu tens na barriga...
Bem, parece que continuo a ter alguma utilidade neste mundo. Enquanto tiver os bebés na barriga, continuo a fazer falta ao meu filho. Espero que, depois deles nascerem, ele arranje outros argumentos para me tornar importante na sua vida...