Lembro-me de ser pequena e de não dar importância nenhuma ao tamanho das casas dos meus amigos, aos brinquedos que possuíam, às roupas que vestiam... E quando digo "dar importância", não me refiro a conotar os meus amigos como ricos ou pobres, com bom ou mau gosto, e seleccioná-los a partir daí. Não... não dava mesmo importância nenhuma. Hoje olho para trás e recordo com dificuldade que a casa da Ana tinha dois andares, que a da Sónia era só um quarto, que o João tinha sempre as últimas tecnologias para rapazes, e a ciganita que morava ao pé da minha madrinha esperava o camião do lixo para apanhar brinquedos velhos. Perdão, o meu esforço não é para recordar, mas sim para diferenciar. Porque naquela altura não havia diferença entre uma vivenda e um apartamento num bairro social. Não importavam os metros quadrados, as marcas, os preços, as origens... "Brincar" era sempre brincar, fosse com quem fosse, com o que fosse ou como fosse. Por isso às vezes, quando me ponho a imaginar a sorte que os meus filhos têm por terem uma boa casa e uma vida confortável, recuo no tempo e percebo que não é isso que lhes faz mais falta nesta fase da vida deles. Não é isso que eles recordarão quando tiverem a minha idade. O que recordarão serão os sorrisos, as brincadeiras, a forma feliz como conseguiram (ou não) passar o tempo, seja num castelo ou na rua, com os brinquedos do Imaginarium ou um simples punhado de terra para fazer um castelo. Porque o que fica e se recorda não custa dinheiro. Só tempo... (o tempo que sacrificamos para ter dinheiro. Não faz sentido, pois não?)
Ok, hoje o Afonso disse-me: "Sabes, mamã... eu tenho super-poderes". Sorri, tranquila. O meu filho tinha passado de falhado a super-herói em apenas 24 horas. Não sei se a minha tentativa de lhe incutir mais auto-confiança surtiu efeito, ou ele ontem estava apenas a fazer uma experiência lexical. Sei que ele hoje tem super-poderes, como dar saltos em cima do sofá, esconder-se dentro do armário depois de tirar tudo dentro dele e dar cambalhotas em cima da minha cama com sapatos. Tudo coisas que, noutras circunstâncias, me fariam ralhar com ele (ou, se o dia tivesse corrido mal, mandá-lo para o castigo... se bem que o castigo é ficar sentado num sofá lateral onde se vê pior a televisão... O meu filho tem uma mãe muito cruel!). Mas hoje não consegui dizer-lhe nada. Não é todos os dias que se tem super-poderes...
Hoje o meu filho Afonso virou-se para mim e disse-me, com uma expressão grave: "Mãe, sou um falhado!" Ser falhado aos três anos deve ser muito duro. Comecei logo a pensar na rejeição na escola, que os amigos lhe batiam (porque ele é magrinho, e eu devia dar mais ouvidos ao pai e dar-lhe mais porcarias hipercalóricas!), nas birras que ele às vezes faz e que levam os coleguinhas a chamar-lhe "bebé" (embora a professora insista que ele só as faz em casa), no facto de ele ainda usar fralda à noite (todos os dias me pede para a tirar para não ser "bebé", mas todas as manhãs acorda cheio de xixi!), e no facto de ter nascido no mês de Outubro, quando a maioria dos colegas é do início e meio do ano (é novo demais! Não acompanha! Rejeição! Rejeição! Rejeição!). Em segundos a minha cabeça navegou na rejeição do meu filhinho mais velho, que afinal se dá bem com toda a gente na escola, é magro mas junta-se aos mais fortes para não levar porrada, não faz birras e está longe de ser o único a ainda usar a fralda à noite. Nasceu em Outubro, ainda não desenha figuras humanas, mas tenho belos desenhos e pistas de carros (que são riscos de várias cores porque ainda não sabe fazer mais nada). Arranjei coragem e perguntei ao meu filho porque é que ele era falhado. "Porque não consigo patinar com meias, mamã...". Ok, o meu filho tinha tirado os sapatos (já se despe sozinho, vêem?) e estava a tentar fazer patinagem no mármore do hall. Não correu como ele imaginou e ele sentiu-se um falhado, vá-se lá saber porquê, se calhar só porque o Ruca também assim se sentiu num qualquer episódio que me tenha escapado. Aproveitei para lhe dar carradas de auto-estima e deslizei com ele no mármore para lhe explicar que ele podia fazer e ser tudo o que ele quisesse. É um bocadinho mentira, mas é duro para um pai ouvir um filho dizer que é um falhado... Antes seja gabarolas (com motivos, de preferência).
O Sebastião já diz "eu queuo" (aponta e di-lo suplicantemente, o que não era mau se ele não apontasse quase sempre para telemóveis, comandos e ferramentas do pai), porta, luz, mano (que soa a "mana", mas tudo bem), "afoncho", "obigado", pé, "patato" (sapato), banana (que é tudo o que seja sinónimo de fruta), além de pai, mãe, avó e avô, e mais umas quantas aproximações de palavras que ainda não consegui provar à família, porque quando chega a hora H ele nega-se a fazer a gracinha. Não faço ideia se o Afonso já dizia estas palavras nesta fase, a minha memória foi-se inexplicavelmente, mas felizmente desta vez tenho um blog para registar a ocorrência. O milagre da linguagem está a acontecer cá em casa!
Coisas de Pais
Conheço muitos casos de filhos, com a minha idade e mais velhos, que apesar de adorarem os pais, não conseguem deixar de discutir com eles a toda a hora, desprezarem-nos, "picarem-nos", magoarem-nos... E isto acontece sobretudo com as mães. Conheço muitos filhos e filhas adultos que "tratam mal" as mães (estou a falar dentro dos limites do aceitável, claro) e, quando confrontados com a situação, negam-na ou admitem-me e realmente percebem que não faz sentido. Mas não conseguem mudá-la. O que a motiva é o que hoje me questiono. Será que há uma necessidade, a dada altura da nossa vida, de "cortar" abruptamente o cordão umbilical? Será que esses filhos apenas são demasiado parecidos com os pais e "chocam"? Será que há uma tendência em nós, seres humanos, para desprezarmos aqueles que mais nos amam, incondicionalmente? Ou faz parte da natureza que os filhos, a dada altura, se tentem mostrar superiores aos pais?
Não tenho a resposta, mas parece-me uma situação demasiado comum para ser ignorada. E pergunto-me como será quando os meus filhos tiverem essa atitude comigo (se a tiverem). Vão começar por me chamar lamechas por andar sempre a dar-lhes beijinhos, e depois chata por querer saber das namoradas, e depois melga por lhes querer entrar pela casa adentro e pôr e dispôr da vida deles... e depois vão falar entre eles, quiçá com o pai deles, "a mãe está que não se pode..." Se calhar a culpa também é das mães/pais, em muitas atitudes que tomam, mas os pais erram e os filhos acusam. Os filhos erram e os pais... ignoram. Enfim, acho que é a lei da vida.
Coisas de Pais
E quando ficamos doentes e sem forças sequer para pegar nos nossos filhos? Com crises de tosses que nos obrigam a fugir deles para não lhes atirar virús para cima? E quando eles nos pedem atenção e o nosso corpo suplica por cama? A febre rouba-nos o que ainda resta de paciência ao fim do dia, e os filhos reagem multiplicando as birras e as chamadas de atenção. Porque não percebem. Não acham possível que os pais também fiquem doentes. Os pais, não! E, de facto, nenhum pai devia poder ficar doente até os seus filhos serem grandes. Seja uma vulgar gripe ou uma doença efectivamente grave (que não é o meu caso, felizmente). Hoje pedia ao meu filho Afonso: "Deixa-me ficar só mais um bocadinho deitada... A Teresa dá-te banho". Ao que ele respondeu: "Mas eu também estou doente, mãe. E preciso de ti..." Pura mariquice. Mas quem é que consegue resistir? Lá tive de arranjar umas forçazinhas para o levar à banheira, à custa dos Ben-u-rons que já começavam a fazer efeito. Mas nem tudo se cura a Ben-u-rons. E há pais que fazem verdadeiros milagres para, mesmo doentes (e com doenças raves(, continuarem presentes nas vidas dos filhos. A minha homenagem, hoje, é para eles.