Coisas da Cabeça da Mãe

- 30.7.10

A propósito da morte do actor António Feio, voltou o tema da morte. Não nos filhos. Na mãe. Recebi vários mailes hoje sobre palavras que o actor tinha dito, conselhos que tinha deixado aos amigos, despedidas ao público em geral... e lembrei-me da carta que, em tempos, escrevi aos meus filhos. Não era uma carta qualquer. Era a carta que eu queria que eles lessem se um dia morresse de repente. Os gémeos ainda não existiam (e tempo para reescrever a carta?), e ainda não me pesava tanto a pergunta que carrego hoje: Como é que o meu marido se desenrascaria sozinho com 4 filhos?! Naquela altura a preocupação maior era outra (e ela continua grande): Que memórias guardarão os meus filhos da mãe, se eu partir agora? Sei que a memória é traiçoeira, e a das crianças apaga-se frequentemente para deixar espaço para tudo o que elas têm de aprender ainda (como perguntava o meu sobrinho Manel: Eu depois vou-me esquecer disto?). Quando se é adulto e nos morre alguém querido, guardamos dessa pessoa o melhor dela. Apaga-se o resto. E isso não é mau. Quando se é criança e morre alguém querido, não se apaga só o mau. Apaga-se também o bom. Frequentemente, apaga-se toda a pessoa. Tudo. Por isso, se eu desaparecesse naquela altura, desapareceria tudo. Na memória dos meus filhos ficaria apenas aquilo que o pai, a família e os amigos lhe diriam. A explicação das fotografias que veriam. A tristeza dos adultos, que passaria para as crianças. Ao ponto de as marcar. Ao ponto de os fazer associar à ideia da mãe uma tristeza infinita. Uma perda irreparável, de uma memória que nem é real, porque foi fabricada pelos outros.
Posso não estar certa. Espero continuar por cá para não ter de o comprovar. Mas, pelo sim pelo não, escrevi uma carta aos meus filhos. Uma carta bem disposta, a dizer-lhes que fui muito feliz com eles, e que a felicidade deles, daí em diante (depois de me perderem) não estava de modo nenhum dependente de mim. Chegara a altura de seguirem o seu caminho, e outras pessoas igualmente competentes os acompanhariam nessa viagem. E que eu tinha pena de não estar presente, mas que o exemplo de me perderem cedo lhes fizesse sentir uma responsabilidade maior de serem felizes todos os dias.
Poderia ter-lhes dito que ia ficar numa estrelinha. Num céu. Sempre ao lado deles. Mas essas mentiras (só porque não tenho a felicidade de acreditar nelas) deixaria para a boca dos outros. A minha carta seria para o caso de eles, assim como eu, não terem também a capacidade de acreditar em algo para além daquilo que temos aqui em baixo. Seria a minha verdade. E eu nunca minto aos meus filhos.

A carta existe. Terá de ser reescrita. E espero ainda escrevê-la muitas e mais vezes. Não porque conto ter mais filhos que me forcem a uma necessária actualização. Mas porque espero viver o suficiente para ver os meus filhos seguir os seus sonhos e serem felizes, anulando (por ausência de necessidade) linhas de conselhos e vontades minhas, até que a minha partida seja entendida como natural, a lei da vida, a memória já não seja uma traição, e não sejam já precisas mais cartas de despedida... Ou, a ela ainda existir, que seja apenas uma linha: "Foi um prazer estar convosco".

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4 comentários

  1. São coisas da cabeça da mãe, mas principalmente do coração das mães. A ideia da nossa finitude, de não podermos controlar o tempo e a nossa permanência aqui é sempre uma coisa que nos asusta (agora que estou a começar esta caminhada de ser mãe, tb estes pensamentos surgem na minha cabeça). Mas estou convencida que nos vamos acompanhar por muitos anos nesta nossa caminhada de cuidar dos filhos e poder partilhar essas boas experiências!!

    um beijinho grande

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  2. Devias então aproveitar todos os dias, todos os momentos, fazer coisas que os miúdos se lembrem sempre. Porque eu acredito que as crianças não se esquecem totalmente de uma pessoa que já partiu. Podem sim não ter lembranças nítidas, apenas "flashes".
    E acho que muito menos se esquecerão de uma mãe como tu.

    Beijinhos * :)

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  3. Por isso criei o blog para um dia se desaparecer de repente e a carocha não tiver oportunidade de me conhecer irá ler o blog e saber alguns dos pensamentos, o amor que eu tenho por ela e pela vida e tudo o resto.mas espero que a malta viva mais 100 anos no mínimo

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  4. Olá.
    Cheguei aqui através do blogue cocó na fralda, que sigo diariamente.
    Este post que escreveu sensibilizou-me bastante, ainda porque concordo consigo em muitos aspectos deste tema.
    Depois deslizei o rato e descobri uam série de post onde eu também me identificava aqui e ali - talvez por ser mãe de 3 filhotes (2 meninos e 1 menina :).

    Vou passar a passar cá de vez em quando - desculpe a redundancia ;)

    Um bem-haja!
    Bárbara Yu
    http://m-de-mae.blogspot.com

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