Coisas de aprender com autonomia

- 19.10.15

Sexta-feira é o dia em que tenho os dois filhos mais velhos com a tarde livre.
É também o último dia da semana, aquele em que eles estão mais cansados e fartos de uma semana inteira de aulas, trabalhos e afins.
Apanhei-os na escola e fiz-lhe a pergunta errada:

(Mãe) Quantos testes têm para a semana? Como é que estão a pensar organizar o vosso estudo?

Ouvi bocejos, vi olhos revirados e, claro, ouvi as resmunguices do Afonso.

(Afonso) Porque é que a escola tem de ser uma seca? O Sebastião está a dar os números primos, os planetas, as classes de palavras... e eu estou a repetir tudo outra vez! Como se dois anos depois já me tivesse esquecido...

(Mãe) Mas estás a aprofundar...

(Afonso) Então para isso davam tudo de uma vez! Para que é que nos andam a empatar? E porque é que nos obrigam a estudar coisas que não nos interessam para nada? Que não nos servem para nada!

(Mãe) O que é que tu aprendeste hoje que não te serve para nada?

(Afonso) Todos os tempos verbais, possíveis e imaginários, por exemplo.

(Mãe) Mas isso é importante para saberes falar corretamente.

(Afonso) Mas eu já falo corretamente. Para que é que eu preciso de saber se o verbo que estou a dizer é no Pretérito Perfeito do Conjuntivo, no Infinitivo ou no Condicional? O que é que isso interessa para o meu futuro? E porque é que ninguém me pergunta o que é que me interessa?

Respirei fundo, abri os vidros, mudei a música para algo mais animado.

(Mãe) Tu sabes que a mãe concorda contigo, em certa medida. Acho que há conhecimentos que são importantes, mas também acho que vocês deveriam ser guiados pelos vossos interesses pessoais. Fazerem as vossas escolhas e aprofundarem aquilo que realmente vos interessa. Mas, para isso mesmo, vocês têm agora mais tempo livre. Sejam organizados, estudem o que têm de estudar para a escola, e depois dediquem o resto do tempo àquilo que vos interessa. Mas é preciso que vocês saibam aquilo que vos interessa. Se tivessem de escolher agora uma matéria para trabalhar e aprofundar, o que é que escolhiam?

(Afonso) Eu gosto de saber mais sobre o universo... outras civilizações... civilizações antigas.

(Mãe) Óptimo. Existem excelentes documentários sobre isso.

(Sebastião) O que eu gosto mesmo é de fazer coisas manuais. A minha disciplina preferida é ET. Queria construir coisas.

(Mãe) Óptimo. Existem excelentes tutoriais na internet, para te ensinar a fazer quase tudo o que quiseres.


Quando decidi que os meus filhos deveriam ir para o ensino público, para terem tardes livres, pensei para comigo elaborar um plano meticuloso em que os poria a fazer tudo aquilo que eu achava importante para o seu crescimento.
Mas tenho vindo a perceber, pouco a pouco, que eu apenas devo intervir orientando as escolhas deles, e garantindo que, a par delas, e independentemente delas, são alimentados também os valores e competências fundamentais para o desenvolvimento de qualquer ser humano. Mas nada será eficaz se eles não forem cada vez mais autónomos nas suas escolhas, e responsáveis por elas. Nesta fase do campeonato, eu terei de ser apenas uma facilitadora, permitindo que eles tenham acesso ao que pode ensinar-lhes (livros, filmes, manuais, passeios, visitas, ações), mas sem imposições. Para impor, já existe o ensino obrigatório.

E hoje surgiu-me este texto sobre a Escola da Ponte. Nunca a visitei, mas neste artigo é dito muito daquilo que eu tenho vindo a perceber ser eficaz, com os meus filhos, e muito possivelmente com todas as crianças:

"A Escola da Ponte não adota um modelo de séries ou ciclos. Lá, os estudantes de diferentes idades se organizam a partir de interesses comuns para desenvolver projetos de pesquisa. Os grupos se formam e se desfazem de acordo com os temas e a partir das relações afetivas que os estudantes estabelecem entre si. (...)
Segundo o projeto educativo, a escola tem como pedagogia o “Fazer a Ponte”, que visa a formação de pessoas autônomas, responsáveis, solidárias, mais cultas e democraticamente comprometidas na construção de um destino coletivo e de um projeto de sociedade que potencialize a afirmação das mais nobres e elevadas qualidades de cada ser humano."

Vale a pena ler o artigo. E creio que vale a pena, dentro da medida das nossas possibilidade, permitir aos nossos filhos esta experiência de autonomia e responsabilização que, a par de uma saudável educação, pode fazer deles pessoas mais preparadas para o futuro que os espera.

http://educacaointegral.org.br/experiencias-internacionais/escola-da-ponte-radicaliza-ideia-de-autonomia-dos-estudantes/

PS - O Afonso já escolheu um conjunto de documentários sobre o universo. E o Sebastião, com os irmãos mais novos, vai fazer https://www.facebook.com/Channel4News/videos/10153275300621939/?pnref=story. E, entre a poderosa insignificância de sermos um grão de areia no universo, e a capacidade de reconstruirmos os nossos sonhos, mesmo no pior cenário, hei-de conseguir transmitir-lhes os valores também os valores que me interessam...

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1 comentários

  1. Gostei bastante. Devemos ajudar os nossos filhos a encontrar o seu caminho mas sem forçar a nada.
    Se o pequeno gosta de construir coisas se calhar ia gostar de fazer maquetes :)

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